Manifesto: Resgatar o futuro, não o lucro

A crise do Covid-19 veio expor, mais uma vez, as fragilidades do sistema capitalista. Mostrou que este sistema nos enfraquece colectivamente, nos fragiliza, nos vulnerabiliza e ameaça destruir-nos. Não o faz de forma igual nem à mesma velocidade, acentuando as desigualdades anteriores, com base na falta de rendimento, classe, género, nacionalidade, etnia, orientação sexual. Os maiores custos desta crise são imputados a quem menos pode e, não duvidamos, tenderão a sê-lo ainda mais quando entrarmos numa fase de rescaldo da doença e com a tentativa de fazer “voltar a normalidade”. 

Em Portugal, como por todo o Mundo, quem sustentou quarentenas, cuidou de doentes, garantiu abastecimentos e logística, foram precárias e trabalhadores dos serviços essenciais, redes de solidariedade e pessoas que cuidam de nós em casa e nas ruas, seja esse trabalho remunerado ou não. O seu trabalho manteve os sistemas alimentares em funcionamento, os hospitais funcionais, o sector social e os transportes públicos activos, os serviços de água e resíduos a trabalhar, os campos colhidos, as casas (próprias e de outrem) e as pessoas cuidadas. O trabalho essencial não é apenas aquele que é legalmente definido. Dependemos destas pessoas, mas uma cortina de fumo tentava escondê-las. Esta cortina já está a ser novamente fechada. 

Os direitos básicos estão ameaçados. Face a uma crise de saúde e de economia, os direitos têm de ser garantidos a toda a população, de forma incondicional. A falta generalizada de rendimentos torna-se a normalidade num sistema que só gere crises com colapsos sociais. Para travá-los:

–  O SNS precisa de ser protegido dos esforços de mercantilização da saúde, com reforços e garantias de capacidade de resposta às necessidades de cuidados e reforço das condições a quem lá trabalha, com a universalidade e a gratuitidade. 

–  As condições para ter comida têm que ser garantidas – sempre – como um direito básico exercido de forma universal, e não como caridade dependente da boa vontade de terceiros.

– Os despejos devem ser impedidos e os edifícios sem uso útil devem passar a prover habitação já e no futuro.

– Urge que todas as famílias tenham acesso a energia e água, numa lógica que enquadre os limites ambientais e a justiça social. 

– Deve haver acesso universal aos meios digitais e a um sistema de ensino público universalmente gratuito que nos prepare para um futuro de riscos e incertezas ainda maiores do que aquele em que vivemos até agora.

– É necessário enfrentar o racismo, o autoritarismo e a violência estrutural sobre pessoas racializadas e pobres.

A profunda crise climática não desacelera e as ondas de choque do Covid-19 agravam os impactos desta, reduzindo a segurança de bens essenciais e a protecção em catástrofes. O capitalismo, enquanto sistema económico, não resolverá a crise social nem a crise climática. A solução da crise climática exige, desde logo, uma transição energética justa, desmantelando na próxima década a indústria energética e de transportes baseada em fósseis, reconfigurando os modos de produção. Para isso, é necessário empregar centenas de milhares de pessoas em serviços públicos essenciais que garantam soberania e democracia produtivas

O avanço do Estado na economia, que já está a acontecer, ao invés de tentar salvar o capital limitando-se a ajudar à retoma do Business as Usual, como tem acontecido sempre que o capitalismo mergulha em crise, tem de ter como linha orientadora salvar as pessoas e responder às suas necessidades. Com o colapso da economia, o capital mobilizará todos os seus esforços e recursos para que os governos assumam a prioridade de salvaguardar as grandes empresas privadas. Pelo contrário, é o trabalho que tem de ser assegurado, com condições dignas e igualitárias, numa nova economia participada, social e que garanta a sustentabilidade da vida. É preciso resgatar as pessoas dos sectores agora arrasados, como o turismo de massas ou as energias fósseis, para sectores como os cuidados (hospitais, lares, alimentação, limpeza, entre outros), a cultura e as energias renováveis, respondendo à falta de empregos e à reconfiguração necessária da economia para o cuidado da vida, ao invés da dependência económica de sectores vulneráveis e em alguns casos socialmente inúteis. Por outro lado, há demasiados bens essenciais que dependem de cadeias de produção frágeis, de multinacionais e de dinâmicas geopolíticas ultrapassadas. Garantir uma produção segura de alimentos e de medicamentos com cadeias curtas, com maior proximidade entre produtores e consumidores, é central para a nossa segurança. 

No entanto, a cada passo dado produz-se mais dívida, num sistema instrumentalizado pelos poderosos para perpetuar o status quo. Estas dívidas privam-nos de liberdade e de capacidade de acção e emancipação, servindo apenas para agravar a exploração de pessoas e recursos. Enquanto as dívidas, em particular dos Estados, não forem repudiadas, não há saída.

No próximo dia 6 de Junho sairemos das nossas casas em manifestação pública, observando os cuidados necessários para protegermos os/as outros/as e para nos protegermos. Sairemos porque há milhões de pessoas que nunca pararam de sair, com enorme risco pessoal e familiar, e não deixaremos que estas pessoas voltem a ser postas atrás de uma cortina de desprezo e desvalorização. Sairemos porque a falta de planos reais e de apoios reais para milhões de pessoas, em Portugal como no mundo, e em particular planos reais para as pessoas mais frágeis, é uma ameaça ainda maior do que a pandemia actual, aumentando a LGBTQfobia, a xenofobia e o sexismo.  Sairemos porque vivemos outras crises, como a crise ambiental e climática, que precipitará outras crises económicas, sociais e sanitárias, e que não só não desapareceu como se agrava. 

Sairemos por um plano massivo de empregos públicos para salvar as pessoas e o clima. Sairemos porque a política e democracia não foram postas numa gaveta e têm de voltar à rua para se expressar, para contestar os rumos e falta de rumos que são impostos sem consulta, sem pergunta ou debate, como se tivéssemos perdido o direito de intervir no nosso governo colectivo. Não ficaremos a assistir à História, criaremos a nossa História.


Subscritores iniciais:

A Coletiva 

Associação de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis 

Climáximo 

Greve Climática Estudantil – Lisboa

Habita – Associação pelo direito à habitação e à cidade

Rés do Chão – Associação pelo direito à habitação

em actualização no site www.resgatarofuturo.pt

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