Maria J. Paixão – Investigadora
Artigo de opinião na Sábado, 24 de Novembro 2024
A COP deste ano suscitou críticas especialmente ferozes por se realizar num Estado produtor de petróleo e por se ter iniciado envolta em polémicas relacionadas com acordos paralelos sobre combustíveis fósseis a ter lugar nos corredores da conferência.
A sucessão de polémicas e impasses que tem marcado a 29.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas torna evidente o estádio avançado de degradação a que chegou o multilateralismo climático. No fim da primeira semana de trabalhos, alguns dos principais líderes e peritos em matéria climática publicaram uma carta aberta pugnando pela reforma da Cimeira. Na carta pode ler-se: «É agora claro que a COP já não é adequada aos seus objetivos. A sua estrutura atual é simplesmente incapaz de produzir mudanças a uma velocidade e escala exponenciais, que são essenciais para garantir uma zona climática segura para a humanidade.».
As críticas à COP têm-se multiplicado nos últimos anos, sobretudo em face do cada vez mais evidente fracasso da ação climática global. Com efeito, quase três décadas depois da assinatura da Convenção, as emissões de gases com efeitos de estufa continuam numa trajetória ascendente e tudo indica que o ano de 2024 será, não só o ano mais quente de sempre, mas o primeiro ano em que é ultrapassada a meta de aquecimento estipulada no Acordo de Paris, assinado na COP21. A COP deste ano suscitou críticas especialmente ferozes por se realizar num Estado produtor de petróleo e por se ter iniciado envolta em polémicas relacionadas com acordos paralelos sobre combustíveis fósseis a ter lugar nos corredores da conferência. Não obstante o espetáculo especialmente degradante em que se tornou esta COP, a interferência da indústria fóssil sobre as cimeiras do clima não é uma novidade, antes pelo contrário. O nível de degradação a que assistimos não é um acaso dos tempos, mas antes a conclusão inevitável da falha congénita da arquitetura internacional.
Pelo menos 1773 lobistas do setor fóssil tiveram acesso à COP29, superando, em número, praticamente todas as delegações nacionais. Este grau de participação de representantes das indústrias do carvão, petróleo e gás nunca poderia ter lugar num vácuo; é, necessariamente, o resultado de décadas de lobby. Com efeito, documentos recentemente trazidos a público provam que o lobby fóssil tem estado presente nas negociações desde a primeira convenção internacional sobre matéria ambiental, realizada em 1972 em Estocolmo, influindo diretamente sobre o conteúdo e a trajetória do regime jurídico internacional. Logo em 1973 foi constituída a ‘Associação Internacional de Conservação Ambiental da Indústria Petrolífera’ (atualmente, Ipieca). A Ipieca esteve em todas as COPs e tem desempenhado, nas suas próprias palavras, um “papel ativo” junto do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (o organismo científico que produz relatórios sobre o estado da ciência climática global) desde a sua criação.
Esta dupla investida, na esfera política e na esfera científica, é uma estratégia que a indústria fóssil aprendeu com a indústria tabaqueira. Nos anos 1950, as grandes tabaqueiras começaram a descobrir os efeitos nocivos do seu produto, tendo desenvolvido desde então uma extensa campanha fraudulenta, destinada a branquear a relação entre o tabaco e o cancro. Num célebre memorando de 1969, um executivo da indústria afirmava: «A dúvida é o nosso produto, pois é o melhor meio de competir com o “corpo factual” que existe na mente do público. É também o meio de criar uma
controvérsia.». A estratégia fulcral foi, portanto, plantar a semente da dúvida, tornando uma questão científica de interesse geral numa controvérsia política. Um memorando semelhante do American Petroleum Institute, de 1998, esclarecia a estratégia fundamental das grandes petrolíferas: fazer o público acreditar que «existem incertezas científicas significativas na ciência climática.». Depois de terem começado a compreender o impacto da queima de combustíveis fósseis na década de 1970, corporações como a Exxon e a Total investiram milhões em campanhas orquestradas para descredibilizar a ciência climática.
Além de ludibriarem o público, tanto a indústria tabaqueira como a indústria fóssil ocultaram informação das autoridades públicas e recorreram a diversos artifícios para impedir a regulação dos correspondentes setores. Como vimos, parte indispensável da investida anti-regulatória da indústria tabaqueira consistiu em transfigurar uma questão de interesse público num debate polarizador, em que a regulação do setor era configurada como atentado à liberdade. Igualmente essencial têm sido os financiamentos multimilionários a campanhas de candidatos eleitorais, com o intuito de obter o seu favor. Exatamente as mesmas dinâmicas podem encontrar-se no modo de operação da indústria fóssil, que conseguiu difundir uma narrativa divisiva quanto ao maior problema coletivo que a Humanidade já enfrentou. Simultaneamente, os avultadíssimos financiamentos de campanhas políticas pelo lobby fóssil têm permitindo manter vivo um negacionismo climático completamente incompatível com décadas de investigação científica. O debate público é pervertido e o processo político cooptado.
Por fim, tal como a indústria tabaqueira tentou salvar a sua própria pele conjurando novos produtos alternativos cujos impactos na saúde seriam, alegadamente, mitigados (como o tabaco para mastigar), também a indústria fóssil tem propagandeado incessantemente falsa soluções climáticas, em particular a captura e armazenamento de carbono.
O manual de instruções da indústria tabaqueira tem sido exemplarmente implementado pela indústria fóssil. Dado o caráter global da emergência climática, a indústria fóssil garantiu a aplicação de todas essas táticas comprovadas também no plano internacional. As COPs nasceram já no seio desta teia totalizante de influência. Enquanto a indústria fóssil tiver um lugar à mesa, a mesa será sempre por dominada pelos seus interesses. Por conseguinte, não estamos a assistir ao inesperado desmoronamento do multilateralismo climático; estamos, isso sim, a assistir sem filtros à operação normal de um sistema multilateral falho de origem.