Admito. Num domingo à noite, se eu visse um edifício em chamas, primeiro pensava em ligar para os bombeiros, e logo depois pensava sobre o que eu posso fazer. Se, no entanto, eu visse umas pessoas com fardas de bombeiro a deitar mais gasolina nas chamas, protegidas por linhas policiais, então gritava em voz alta para mobilizar toda a gente.
Isto interrompia o descanso dos vizinhos que, o tanto precisam, para encararem a semana que começa. Isto acordava o meu vizinho que trabalha à noite e, que tinha acabado de chegar a casa e colapsado na cama. Isto interrompia qualquer atividade: se algum vizinho estivesse a ver uma série, a acabar um projeto da escola para entregar amanhã ou a ter um momento íntimo, com uma outra pessoa, ficaria muito chateado comigo.
Aliás, se não acordarem, não me importava de ir bater nas portas, entrar nas casas, mobilizar toda a gente para resolvermos o problema. Isto seria, uma “manifestação não autorizada”. Muito provavelmente, alguns polícias aproximar-se-iam de mim e dir-me-iam para parar. Não parar, seria então, “desobediência às ordens da autoridade”.
A cada momento que algumas pessoas se juntam, tentávamos passar pela linha policial e travar os incendiários. Cada vez que não conseguíssemos, voltávamos a chamar mais pessoas a juntarem-se a nós. Ninguém acharia nada disto, de “disrupção da ordem pública”. Não tenho eu nada a ganhar pessoalmente com isto, sem ser proteger a minha comunidade e as condições materiais da vida de toda a gente. É um ato de amor, solidariedade e cuidado.
Estou a escrever isto, duas semanas depois das cheias na Europa Central, que mataram dezenas de pessoas e dos incêndios florestais em Portugal que mataram nove. Estou a escrever isto, uma semana depois das cheias no Nepal e nos Estados Unidos, ambas com centenas de mortes e cidades inteiras engolidas. Estou a escrever isto, ao mesmo que, a Argentina entra no segundo mês dos incêndios. Tudo isto, sem contar com um aumento drástico e mundial nos preços de alimentação por causa das secas generalizadas. Meses seguidos de recorde de temperaturas, os cientistas que antes estavam a gritar para alertar-nos, agora estão a chorar e a gritar ao mesmo tempo e tomam ações diretas para tocar os alarmes. Não há qualquer dúvida que estamos num estado de guerra, sendo as armas de destruição em massa, as catástrofes climáticas. E, como em qualquer outra guerra, não são lançados mísseis, a todas as cidades e ao mesmo tempo, há zonas ligeiramente mais seguras do que outras, mas todas as regiões são diretamente afetadas.
Estou a escrever isto enquanto as empresas petrolíferas declaram lucros recorde, enquanto o governo português quer construir um novo aeroporto, enquanto há um aumento exponencial nas viagens de jatos privados, enquanto há ultraricos a comprar terrenos (inclusive em Portugal) para construir bunkers para eles. Não há qualquer dúvida que os incendiários sabem o que estão a fazer e tentam proteger-se do que vem.
Estou a escrever isto enquanto, só no Reino Unido, há 40 ativistas em prisão por terem participado numa manifestação, ou então, por terem participado num webinar que fala sobre uma manifestação. Não há qualquer dúvida que os incendiários ergueram muralhas e tentam tapar o sol com uma peneira: prender os mensageiros não prende a mensagem.
Nos tempos que vivemos, interromper a vida pública não é um direito, é uma obrigação histórica e moral. Consentir à normalidade seria ser cúmplice na destruição de tudo o que importa, e seria um sinal de apatia.
Temos de parar o que estamos a fazer, para falarmos sobre como vamos parar o colapso da civilização. Temos de parar enquanto podemos.