Nas últimas semanas, assistimos ao aumento exponencial de um fenómeno profundamente perturbante.
Foi introduzida a palavra “desacato” em referência às manifestações espontâneas realizadas em bairros marginalizados. A PSP emitiu comunicado após comunicado e foi tratada como uma fonte de informação credível. Este tratamento é um problema em geral, mas torna-se especialmente preocupante quando acontece logo depois da própria PSP assassinar um cidadão.
Importa, por isso, alertar para a aceitação acrítica deste enquadramento, quer pela comunicação social quer pela sociedade em geral. De repente, a discussão pública focou-se na questão da “posse de arma branca”, em saber se o Odair era dono do carro que conduzia, e numa série de outros assuntos completamente alheias à injustificável violência policial. Todos estes assuntos foram levados ao debate público pelos comunicados da PSP (e não, por exemplo, pelo Ministério da Administração Interna, que geralmente assume a responsabilidade nesta matéria e esclarece a população).
No seu quarto comunicado, a PSP afirma que “repudia e não tolerará os atos de desordem e de destruição praticados por grupos criminosos, apostados em afrontar a autoridade do Estado e em perturbar a segurança da comunidade, grupos esses que integram uma minoria e que não representam a restante população portuguesa que apenas deseja e quer viver em paz e tranquilidade.” Estas frases foram reproduzidas acriticamente nas notícias, e refletem uma profunda cultura antidemocrática. Numa única frase, a PSP:
– toma uma posição própria sobre acontecimentos sociais (“repudia”)
– declara criminoso alguns grupos (“atos de desordem e de destruição praticados por grupos criminosos”)
– determina as motivações dos mesmos grupos (“apostados em afrontar a autoridade do Estado” etc.)
– faz uma análise pseudo-sociológica destes grupos (“integram uma minoria” etc.)
– e fala em nome da população portuguesa (“não representam a restante população portuguesa que apenas deseja” etc.)
O conteúdo, quando não parece um verdito dum tribunal, parece um comunicado dum partido político ou duma associação. Só que é um comunicado duma instituição armada do Estado.
Vamos respirar fundo.
A criminalização e marginalização são feitas por vários meios (por exemplo, via estruturas sociais como a falta de investimento nos serviços públicos em certas comunidades, ou via repressão violenta), mas terão sempre de ser normalizadas através de discursos públicos.
O sistema monta e alimenta um discurso divisivo e violento: As mesmas coisas que, quando feitas por grupos pró-sistema, são apresentadas como positivas ou neutras, são nestas circunstâncias relatadas com palavras completamente diferentes. Esta linguagem normaliza a criminalização e a marginalização. Os políticos, as instituições sociais e a comunicação social, aliados da classe dominante, espalham este discurso.
Sabemo-lo porque sentimos na pele a mesma estratégia, também usada contra o movimento pela justiça climática. O que nos disseram durante décadas sobre as pessoas racializadas de Portugal e o que se disseram durante séculos sobre os países colonizados e as pessoas escravizados, é o mesmo que nos dizem contra todas as pessoas que resistem às injustiças.
Com duas dezenas de casos em tribunal e com várias ativistas condenadas por insistirem em dizer a verdade sobre a emergência climática, estamos solidárias com o movimento antirracista em Portugal.