O Acordo em Falta entre as Organizadoras – O que a emergência climática faz mudar nas nossas estratégias e organizações?
Nos últimos anos, o movimento pela justiça climática fez várias mudanças bruscas, tanto na estratégia como na tática.
Muitas organizadoras de movimentos sociais não demonstraram curiosidade suficiente relativamente a estas experiências, em parte porque sentiam que a sua análise e experiência histórica lhes dava uma melhor visão do que funciona (em detrimento de experimentação pouco sustentada por parte das recém-chegadas), e em parte porque as próprias ativistas pela justiça climática não elaboraram as suas próprias estratégias para além dos materiais de formação (as formações dão instruções exactas, enquanto um artigo iria explorar mais contingências e incertezas). Isto é um problema. As organizadoras da justiça climática e as outras organizadoras estão a afastar-se umas das outras.1 Esta ruptura é organizacional, estratégica e também emocional. E nada disto é obrigatório. No entanto, é obrigatório perceber porquê. Qual é, efetivamente, a discordância?
Uma Nota sobre Emoções
Não somos qualificadas para dar sermões sobre inteligência emocional, mas é preciso uma ressalva sobre o uso das emoções neste texto. As emoções são programas neurológicos que requerem ação. As emoções não são irrelevantes, estão no centro de tudo o que as pessoas fazem. As emoções não devem ser evitadas nem avaliadas segundo os seus efeitos positivos ou negativos. Todas são úteis para um fim essencial. As nossas ações decorrem das nossas emoções e nenhuma ação é possível sem emoções.2
Se pensarmos o nosso ativismo político como tentativas para mudar o mundo (uma série de atos e ações), então uma estratégia política é também um enquadramento emocional. Embora pareça que discordemos sobre quão urgente é a urgência da emergência climática, a nossa intuição é que algumas das divergências visíveis decorrem de um desentendimento emocional. Por conseguinte, iremo-nos referir muito às emoções neste texto.
Acordos
Quando começamos a falar sobre a emergência climática numa reunião estratégica com outros organizadores, a parte emocional é desprezada. Isto acontece porque existe uma premissa implícita de que não há ali nova informação que possa ser útil para uma reunião estratégica.
Agora que não estamos em (mais um) ambiente de reunião, propomos parar e refletir sobre esta premissa.
Parece que concordamos que a crise climática está a causar um sofrimento sem precedentes à maior parte do mundo e que a devastação crescerá exponencialmente. Portanto, temos algum grau de acordo a nível político/programático: precisamos de políticas públicas para cortar as emissões, e estes cortes têm que ter em conta a justiça social.
Parece que concordamos que a crise climática é causada, mantida e alimentada pelo capitalismo. Portanto, este é um acordo a nível ideológico: a crise climática não pode ser resolvida sem desmantelar o capitalismo
Parece que concordamos que os valores a que mais nos referiremos são a justiça, a igualdade e a liberdade. O sentimento de violação de qualquer um destes valores produz indignação e raiva, que são os principais desencadeadores emocionais de mobilização.
Parece que concordamos que a informação sobre a crise climática produz ansiedade e angústia nas pessoas, devido ao sentido de prazos/urgência, ao medo de um futuro em colapso e à magnitude do problema a resolver. Parece que também concordamos que estas emoções não são úteis para a política. Talvez tenhamos de ter em consideração a ansiedade climática e a angústia climática, mas não vamos ativar estas emoções como parte da nossa estratégia.
Resumindo, queremos ativar nas massas emoções da categoria raiva, no quadro da justiça, para as mobilizar contra o sistema socioeconómico dentro dos prazos climáticos.
Isto são muitos acordos. Então, não estamos na mesma página? Qual é a questão? Por que razão as organizadoras da justiça climática parecem tão irredutíveis nas conversas estratégicas, e no que continuam a insistir?
Novos Acordos
A emergência climática, uma vez compreendida em todo o seu alcance, contém um significado para as organizadoras que muda tudo.
Todos os meses vemos cientistas do clima ficarem horrorizadas com a velocidade a que a crise climática está a escalar. Corremos o risco real de países inteiros se tornarem inabitáveis durante o nosso tempo de vida. Parar isto requer cortar metade das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, e para Portugal isto significa cortes de 80% a 90% até 2030. Se, num período de cinco anos, não conseguirmos desmantelar o capitalismo enquanto cortamos as emissões globais para evitar os piores impactos da crise climática, corremos o risco de perder tudo.
O significado para as organizadoras é que isto muda tudo, porque temos prazos muito apertados. Estes prazos não se aplicam apenas ao movimento pela justiça climática, estes prazos aplicam-se a todas as causas pelas quais os movimentos sociais lutam.
Se estamos a falar de uma drástica mudança estrutural, se pensamos que isso requer a mobilização de milhares de pessoas, se concordamos que tudo isto tem de acontecer dentro de prazos cada vez mais limitados, então nós, as organizadoras, teremos de passar algumas noites em branco: Qual é o plano para alcançar isto a tempo? Porque achamos que o nosso plano atual é o melhor? Porque pensamos que o nosso plano atual está a funcionar, como podemos perceber quando não está a funcionar e como o provar?
Em poucas palavras, precisamos de emoções da categoria ansiedade. Esta emoção, entre as organizadoras, é imperativa. A emergência climática muda tudo. Não é mais um problema. É estruturante para todas as outras questões – uma estrutura que institui uma cronologia reduzidíssima e uma tarefa massiva. Portanto, a ansiedade de que necessitamos não é sobre os impactos da crise climática; é sobre as nossas estratégias.
Esta ansiedade, uma vez reconhecida e processada, irá – espera-se – provocar um reconhecimento das nossas falhas e impor uma disciplina de aprendizagem sem precedentes. Isto significa que, ao enfrentarmos esta ansiedade, precisamos de aprender a nem a evitar ou nem ser engolidos por ela, mas a aceitá-la e a navegar nela, permitindo-nos focar no que realmente precisa de ser feito e no que é possível ser feito a cada momento.
Precisamos de planear para a vitória no curto prazo (algo que nenhum outro movimento social foi objetivamente obrigado a fazer), precisamos de mudar os nossos planos abruptamente (uma cultura organizacional adaptativa e recetiva que a maioria dos nossos grupos não tem), e precisamos de trabalhar à velocidade da confiança (um ambiente que falta desesperadamente à maioria dos nossos grupos). Isto é uma disrupção no nosso business-as-usual como organizações e como organizadoras. Ninguém causará essa disrupção, nós a causaremos a nós próprias.
Um forte sentimento de ansiedade resultará num processo de reflexão profundo, contínuo e honesto. Esta reflexão será organizacional, bem como pessoal. Isto irá então levar a outro conjunto de emoções.
Notaremos (pelo menos) duas coisas. Em primeiro lugar, compreenderemos a necessidade de romper com os hábitos do passado. Estes hábitos são organizacionais, táticos, comunicacionais, pessoais e emocionais. Inequivocamente, esta é uma constatação violenta. Em segundo lugar, teremos de chegar a um acordo com aquilo a que muitos chamam a crise da esquerda. O alcance desta crise alterar-se-á qualitativamente assim que temos a ansiedade como ponto de partida. Sentir-nos-emos assoberbadas e frustradas pelo défice de ambição prevalente e normalizado.
Ambas estas constatações (e muitas outras) podem então resultar numa sensação de confusão e desorientação. À medida que estas forem diminuindo, serão seguidas por emoções mais pesadas. Essas emoções serão o luto e a angústia. Mais uma vez, não estamos a falar de luto pela perda de biodiversidade ou pelas dezenas de milhões de pessoas que perderam os seus meios de subsistência para sempre; não estamos a falar de luto climático.3 Estamos a falar de fazer luto pela nossa própria cultura política: as nossas estratégias, culturas organizacionais, teorias de mudança, narrativas e tácticas. A maioria delas está empiricamente comprovada como ineficaz e inadequada neste momento. Para desbloquear a disciplina de aprendizagem que os nossos tempos nos exigem, teremos que as largar. O luto, neste sentido, é necessário para seguir em frente. É uma experiência com a qual teremos de lidar regularmente. Teremos de nos tornar fluidos na linguagem do luto, abertos para o instituir, abraçar e permitir que o luto nos apoie para largar o que não está a funcionar e seguir em frente para a honestidade connosco próprios. Com esta honestidade radical em mãos, podemos então ativar livremente o acordo de ansiedade extremamente útil e explorar, experimentar, arriscar e falhar para a frente.
Fazendo um Balanço e Seguindo em Frente
Já sabemos que já concordamos com a raiva e com a mudança do sistema. Mas esse é o jogo antigo. A crise climática dá um significado completamente diferente à política. Nós, entre as organizadoras, temos de concordar sobre a ansiedade partilhada e predominante sobre o que estamos a fazer.
Não se trata de insistir em estratégias ou táticas específicas. Esta é uma insistência num acordo de emoções. Os pontos comuns emocionais (e a falta deles) condicionam o que é possível, o que é aceitável e o que é esperado. Temos de diminuir esta diferença rapidamente, porque ainda temos muito trabalho para fazer.
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1 Ao longo deste texto, temos em mente uma definição simples de organizadora. Se pensarmos que as pessoas deverão fazer determinadas coisas para que o mundo seja um lugar melhor, então uma organizadora é qualquer pessoa que planeia, propõe, organiza e age para que as pessoas façam determinadas coisas.
2 A ligação da emoção à ação não é, na maioria das vezes, direta e imediata. É socialmente construída e também condicionada por histórias pessoais e hormonas.
3 Esta é também uma emoção que pode emergir e, por isso, deve ser tida em conta. No entanto, as ações que se seguem podem influenciar a forma como se liga às pessoas e aos seres vivos que nos rodeiam, mas não irão alterar diretamente as táticas ou estratégias utilizadas.