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O espírito do tempo em julgamento (II)

Maria J. Paixão – Investigadora

Artigo de opinião na Sábado, 26 de Maio 2024

A colisão entre o direito de manifestação e o crime de desobediência é o pano de fundo da maioria dos processos judiciais que, por cá, têm levado ativistas climáticos à sala de audiências.

Num relatório publicado em fevereiro de 2024, Michel Forst, o Relator Especial da ONU para os Defensores Ambientais, alerta para a escalada da repressão estatal do protesto climático. Forst afirma que a repressão que vem sendo exercida pelas autoridades públicas, em especial policiais e judiciais, sobre os ativistas representa uma ameaça significativa à democracia e aos direitos humanos. Acrescenta ainda que esta criminalização do protesto pacífico é especialmente perversa, uma vez que sanciona aqueles que se empenham em soar o alarme para a severidade da emergência que enfrentamos, tal como vem sendo alertado pela comunidade científica há décadas.

Entre os abusos identificados no relatório, destacam-se, desde logo, o assédio e a brutalidade policial. O abuso da identificação e detenção de ativistas, o uso excessivo da força contra protestantes pacíficos e o tratamento degradante durante a detenção (em especial dirigido a mulheres) são alguns dos motivos de preocupação destacados. Ao plano policial soma-se a intervenção judicial. Os tribunais têm produzido mais condenações e aplicado penas mais pesadas, invocando crimes mais graves para o mesmo tipo de ação de protesto. Ademais, em alguns Estados, tem-se verificado a tentativa de criminalizar os próprios movimentos climáticos, sobretudo por via da legislação de combate ao terrorismo ou de associação criminosa. Exemplos oriundos de Portugal são incluídos em praticamente todas as rubricas.

 

Com efeito, a repressão policial e judicial sobre o movimento climático tem-se acentuado em Portugal, verificando-se um fenómeno curioso de criminalização alicerçado no crime de desobediência. Trata-se de um crime contra autoridade pública, consumado por via do incumprimento de uma ordem legítima emitida por entidade competente. Quando o contexto é uma ação de protesto, a ordem é tipicamente emitida por agentes das forças policiais.

Conforme destacado pelo Relator Especial da ONU para os Defensores Ambientais, este contexto não é indiferente, sendo antes a peça fundamental a ter em consideração. Encontrando-se os visados pela ordem policial numa ação de protesto, entram em tensão a autoridade pública, por um lado, e os direitos fundamentais de manifestação e reunião, por outro. Por conseguinte, a legitimidade da ordem que é dada é especialmente importante.
Como bem se compreende, o direito de manifestação ficaria esvaziado de conteúdo se às forças de segurança fosse legítimo ordenar, indiscriminadamente, a dispersão de manifestações. A invocação da ordem e segurança públicas como justificação para ordens restritivas da liberdade individual e coletiva de protesto é historicamente problemática. Importa, por isso, que as instituições oficiais assumam especial cautela – encontramo-nos num campo delicado, onde facilmente se resvala para a erosão de um dos alicerces fundamentais da democracia.

A colisão entre o direito de manifestação e o crime de desobediência é o pano de fundo da maioria dos processos judiciais que, por cá, têm levado ativistas climáticos à sala de audiências. A resistência dos tribunais em examinar rigorosamente a legitimidade das ordens policiais, cria um ambiente propício à desregrada expansão do âmbito de aplicação do crime de desobediência. E essa expansão implica a contínua compressão do direito de manifestação.

O parco escrutínio judicial sobre a legitimidade das ordens de desmobilização de protestos promove uma atitude de ligeireza das forças policiais quando emitem tais ordens. Este processo pode levar ao resultado perverso de transferir para as forças policiais o poder de determinar que manifestações são admissíveis e em que termos devem ser realizadas. Se qualquer ordem policial dirigida a manifestantes é, por defeito, considerada legítima, de tal modo que o seu incumprimento dá lugar a crime de desobediência, então, na prática, são as forças policiais que decidem sobre o âmbito e os limites do direito de manifestação. Ora, sucede que a Constituição portuguesa determina expressamente que os direitos fundamentais (entre os quais, claro, o direito de manifestação) só podem ser restringidos por via legal. O escrutínio judicial rigoroso da legitimidade das ordens policiais que, no contexto de ações de protesto, dão lugar a detenção e acusação por desobediência, é, por isso, vital à boa saúde da democracia.

Ignorar este efeito perverso da repressão policial e judicial sobre as ações dos ativistas climáticos é negar a essência do direito de manifestação. Para ter significado, o direito de manifestação tem de conter espaço para formas criativas de protesto e para a disrupção do quotidiano. Caso contrário, a sua eficácia é nula. A determinação dos moldes do protesto pelas autoridades públicas equivale a esvaziá-lo da sua essência: ser um mecanismo de contestação e de agitação.

 

Conforme destacado pelo relatório da ONU, a tendencial imunidade crítica de que parecem gozar as ordens policiais tem dado lugar à criminalização do protesto. Mais uma vez, é o espírito do tempo que vai a julgamento cada vez que um ativista climático é condenado por crime de desobediência sem o devido escrutínio da oportunidade e legitimidade das ordens policiais. O ativismo de hoje não é conformado, pacato e bem-comportado. Como em outros momentos da história, reivindica para si a originalidade e a contracultura contestatária. Querer, em reação a esse florescimento, forçar o protesto a conter-se dentro de um molde pré-definido é ignorar o espírito do tempo.

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