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O limite de 1.5ºC está morto? E o Acordo de Paris também? Estamos todos mortos? – Sinan Eden

As últimas semanas foram uma tempestade de notícias deprimentes. Para além daquelas no sentido literal, como a tempestade Éowyn que deixou centenas de milhares de famílias na Irlanda sem luz e água ou as cheias sem precedentes na região de Queensland na Austrália, recebemos também a notícia de Trump retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. Essa notícia foi acompanhada por um outro governo de extrema-direita, o de Milei da Argentina, a dizer que estava a ponderar fazer o mesmo. Face a isto, a delegação da Indonésia nas negociações do clima afirmou que assim o Acordo de Paris se tornava irrelevante.

Existe uma tendência de declarar o Acordo de Paris como morto. Será que está? A minha avó está sempre a dizer que a morte é muito menos relevante do que a vida. É mais interessante analisar quão “vivo” o Acordo de Paris tem estado. A ONU prevê que, se todos os países fizessem aquilo a que se comprometeram no âmbito do Acordo de Paris, veríamos um aumento de temperatura de mais de 3ºC até ao final do século. No mesmo âmbito, na semana passada, passou o prazo para os países entregarem os seus compromissos para 2035 com vista a ficarmos no limite de 1.5ºC de aquecimento até ao fim do século, com 95% dos países a falharem o prazo (inclusive a União Europeia, que faz estes exercícios a nível comunitário).

Estes desenvolvimentos no âmbito das negociações climáticas estão intimamente conectados com outros. Ao mesmo tempo que o conjunto dos países responsáveis por 83% das emissões de gases de efeito de estufa falham o prazo para entregar os seus compromissos, as grandes empresas fósseis, como Equinor e o BP, e tal como a Galp em Portugal, anunciaram uma aposta agressiva nos combustíveis fósseis. Tudo isto acontece enquanto 2024 fica para a história como o ano mais quente alguma vez registado, 1.5 ºC mais quente do que na era pré-industrial (meta que, de acordo com o Acordo de Paris, as temperaturas médias não deviam ultrapassar até 2100). O mês de janeiro de 2025 foi também o mês mais quente, em concreto 1.75ºC mais quente – algo que chocou até os cientistas.

O que é que isto nos diz? Com estes acontecimentos todos surge mais clareza nas populações pelo mundo inteiro sobre a gravidade da crise climática, e surge também mais clareza nas classes dominantes para pôr mais lenha (mais carvão, mais petróleo e mais gás fóssil) na fogueira para assegurar a continuação do seu negócio.

Lembro-me de um comício em 2015, em Paris, no dia em que o Acordo de Paris foi assinado. Os intervenientes anunciaram que o acordo foi “muito pior que achávamos”, não considerando qualquer meta concreta em relação ao corte de emissões (com ou sem uma distribuição global justa das responsabilidades) e nem sequer sendo um acordo vinculativo. Lembro-me de um outro momento em 2020, na altura da cimeira do clima em Glasgow, na Escócia, em que uma coligação das organizações de sociedade civil enterraram o Acordo de Paris numa série de ações diretas em simultâneo com uma conferência de imprensa. Em ambos estes momentos, as pessoas minimamente atentas às negociações tinham consciência de que o sistema global capitalista dependente dos combustíveis fósseis não podia resolver a crise climática. Nesse sentido, o Acordo de Paris nasceu morto.

Há uma diferença substancial entre criar um instrumento de mercantilização do planeta e isso ter um impacto verdadeiramente positivo nas vidas das pessoas. Se o objetivo é aumentar os lucros, então cria-se mecanismos para isso. E foi isso que observámos nas três décadas de diplomacia climática. Colocou-se um preço no carbono (um preço aleatório, que dá autorização para matar centenas de milhares de pessoas por ano) e até se criaram produtos financeiros sobre potenciais cortes nas emissões: isto é, o produto da venda é um potencial de cortes numa infraestrutura – o que faz com que haja um incentivo para não fazer o corte de emissões hoje. Tudo isto em simultâneo com o aumento exponencial das emissões globais de CO2.

Esta incompatibilidade entre um sistema que coloca o lucro acima de tudo e um planeta habitável tem sido visível para quem representa o lucro, como explicam Andreas Malm e Wim Carton no seu novo livro “Overshoot: How the world surrendered to climate breakdown”. Em Novembro de 2022, a revista The Economist, principal porta-voz do capital, lançou uma capa com o título “Goodbye 1.5 ºC” (Adeus 1.5ºC). Aqui a declaração não é que um certo instrumento sociopolítico não resolveu uma crise humanitária, a revista está a dizer que a crise não é possível de resolver. Aliás, a mesma revista já quinze anos antes tinha publicado um outro editorial a declarar que a meta de 2 ºC estava morta. Quando o capitalismo não é discutível, a continuação da civilização acaba por sê-lo.

Diz-se muitas vezes que imaginar o fim do mundo está a ser mais fácil de imaginar do que o fim do capitalismo. É preciso acrescentar que o próprio acto de imaginação não acontece no vazio. Está a ser condicionado, dirigido e alimentado por um aparelho gigante de notícias, comunicados e artigos de opinião, todos alinhados numa narrativa comum: tudo é aceitável em nome de evitar qualquer disrupção na acumulação do capital, mesmo que isso implique bater recordes de temperatura, perder territórios inteiros a cheias e incêndios, e a perder países inteiros à crise climática (sempre manifestas via conflitos sociais, económicos e geopolíticos). Quando acabar com os combustíveis fósseis para impedir o colapso civilizacional não está para discussão, é normal que as notícias apenas consigam refletir um sistema em degradação que só vê o autoritarismo como forma de governar.

A meta de limitar o aquecimento global a 1.5 ºC não está fisicamente morta. Existem vários cenários sociopolíticos para evitar esse colapso, e todos eles põem em causa os lucros das grandes empresas. Os instrumentos desenhados com participação de milhares de representantes da indústria fóssil, como as cimeiras do clima, são instrumentos zombi que comem vidas; são mortos. Esses instrumentos e as políticas públicas associadas (e os políticos associados a estes) estão a condenar centenas de milhares de pessoas a morte. Exatamente por essas pessoas (para nós, as nossas famílias, os nossos amigos) não ficarem mortos é que é preciso lutar por 1.5 ºC e pela justiça climática.

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