Um ensaio pela Equipa Legal da Climáximo
§1. As ativistas pela justiça climática não esperam ser presas em protestos. Estão conscientes de que serão detidas e eventualmente condenadas a multas ou prisão, porque compreendem a natureza do aparelho de Estado.
Como está bem documentado noutros locais, os Estados europeus têm vindo a utilizar as suas forças legislativas, executivas e judiciais para aumentar a repressão. As táticas repressivas vão desde a proibição de protestos e detenções preventivas até à violência física e à prisão. Fazem-no porque estão conscientes dos riscos: se a notícia de que os governos e as empresas estão deliberadamente a destruir tudo o que amamos circular amplamente, então o público pode tirar-lhes a licença social para nos governar.
§2. No entanto, há dois mal-entendidos no lado prático desta história.
Em primeiro lugar, as pessoas que praticam o ato efetivo de opressão não são membros do 1%, não são governadores nem CEOs. Embora inseridas numa estrutura de opressão, são, na sua maioria, pessoas comuns (dizemos “na sua maioria” porque, em muitas partes do mundo, os juízes fazem parte da elite socioeconómica). Eles podem não exercerem a opressão. É opcional, e eles têm um planeta a ganhar se não cooperarem.
A não-cooperação pode assumir a forma de desobediência civil, mas pode ser mais subtil. A maioria das táticas de opressão implica tomar a iniciativa, interpretar e fazer escolhas. Podem, de facto, não fazer a opressão. E há muitos casos em que isso acontece.
§3. Há aqui uma armadilha dos media e das redes sociais. Quando um agente da polícia fere um ativista, é notícia. Quando não o faz, não é. Quando um procurador apresenta uma acusação hiperbólica, faz manchetes. Quando arquiva um caso, isso não acontece. Quando um juiz silencia as ativistas que defendem a sua ação com base na emergência climática, isso produz indignação. Quando os ouve, isso não acontece.
Esta armadilha produz a impressão de que a repressão está a agravar-se uniformemente e que as opções menos arriscadas de cidadania ativa estão a diminuir uniformemente.
Isto é incorreto. Na verdade, com mobilizações e ações mais frequentes, os funcionários públicos têm mais oportunidades de fazer as escolhas certas para os seus entes queridos, apoiando o movimento pela justiça climática.
Não nos interpretem mal. Como tendência geral, a repressão deverá tornar-se mais dura a curto e médio prazo: ou porque o movimento pela justiça climática perde, e o colapso climático provoca o fascismo; ou porque as ações pela justiça climática aumentam, desencadeando uma reação do status quo.
No entanto, a tendência não deve ensombrar as decisões que estão a ser tomadas diariamente. A possibilidade de um planeta habitável está escondida nestas escolhas e decisões, tanto do público em geral como dos funcionários do Estado envolvidos nos mecanismos repressivos.
Estas escolhas são reais, recorrentes e abertas. Neste artigo, pretendemos apresentar uma pequena lista de provas empíricas. Nada está a ser feito puramente “no devido processo” ou “devido à regulamentação”, ninguém está “apenas a fazer o seu trabalho”. Todos estão a fazer escolhas, de uma ponta à outra.
§4. A polícia tem de parar uma manifestação?
Não.
Como aconteceu numa marcha lenta em Lisboa, a polícia pode chegar ao local, analisar a situação, concluir que o protesto pacífico deve ter lugar e desviar o trânsito em conformidade. (Esta foi, de facto, a terceira marcha lenta consecutiva numa semana. Na primeira, as organizadoras foram presas; na segunda, toda a gente foi presa.) Desta forma, a segurança rodoviária seria assegurada pela polícia, em vez de se tornar uma acusação para as ativistas.
§5. A polícia tem de identificar as pessoas?
Não.
Como aconteceu na ação Ende Gelände em 2022 ou nas acções da Extinction Rebellion (XR) Netherlands na autoestrada A22 em 2023, a polícia pode decidir abrir a estrada ao trânsito (vergonha!) mas pode simplesmente levar as pessoas para fora da estrada sem sequer as identificar. Isto foi também o que a polícia portuguesa fez à ação da Extinction Rebellion em 2019 e à ação “Nós Somos os Anti-Corpos” em 2020.
§6. A polícia tem de prender as pessoas?
Não.
Imaginemos que a polícia decide identificar os manifestantes (vergonha!) porque o chefe da polícia quer gerir os riscos para si próprio. E depois?
Depois, nada. Veja-se o que aconteceu com a XR Netherlands que bloqueou uma estrada em frente à Total. A polícia não apresentou queixa porque o chefe da polícia diz que “eles [as pessoas que bloqueavam a estrada] não cometeram nenhum ato punível, por isso não vamos apresentar queixa”. Estes ativistas não foram a tribunal para serem absolvidos. Não houve tribunal nem acusação, porque não houve queixa para começar.
§7. A polícia tem de pôr as ativistas sob custódia?
Não.
Não! Mesmo que sejam detidas, a identificação pode ser feita no local e uma eventual queixa ou acusação pode chegar por carta. Foi o que aconteceu com as ativistas que protestavam contra a Electric Summit, patrocinada pela Galp, em 2022. Em vez de serem detidas e passarem horas numa esquadra, foram levados para fora da cimeira, identificadas e libertadas.
§8. O Ministério Público é obrigado a aceitar uma queixa apresentada pela polícia?
Não.
Disso, temos o melhor exemplo.
Estávamos em junho de 2013. Houve uma greve geral, com uma marcha em Lisboa, que terminou na Assembleia da República. No final da marcha, um grupo de 300-400 pessoas lançou uma manifestação espontânea, marchou cerca de três quilómetros acompanhado pela polícia que parou o trânsito (ver §4), chegou à entrada da Ponte 25 de abril, e aí 226 pessoas foram presas em plena cidade durante seis horas (vergonha!). O relatório de queixa da polícia mencionava três coisas: pôr em perigo a circulação rodoviária, protesto não autorizado e difamação (porque viram uma faixa “A.C.A.B.”).
A queixa foi então apresentada ao Ministério Público.
O procurador diz que, se a polícia bloqueou a estrada (parabéns), não há perigo para a circulação rodoviária. Não existem manifestações não autorizadas, trata-se de uma ação espontânea. E “A.C.A.B.” foi seguido de “O capitalismo mata”, pelo que deve ser lido como dirigido à instituição policial e não a polícias individuais.
Assim, o caso foi simplesmente arquivado. Não se realizaram audiências em tribunal. Nem sequer foi nomeado um juiz.
Mas este não é o único exemplo. Em outubro de 2022, duas pessoas pintaram com tinta laranja a fachada do Harrods. Em junho de 2024, o processo foi arquivado por não haver provas de danos.
§9. O juiz tem de aceitar os argumentos de uma acusação?
Não.
Em maio de 2024, três ativistas do Just Stop Oil foram consideradas inocentes de uma marcha lenta, porque o juiz considerou que não havia muita perturbação e que a sua ação era proporcional. Os juízes que declaram que não há perturbação significativa tornaram-se comuns, com vários casos nos últimos meses.
Em Espanha, nove ativistas que utilizaram cadeados para bloquear uma estrada em 2021 foram consideradas inocentes porque o juiz considerou que não exerceram violência ou intimidação.
§10. O juiz pode dar ênfase ao direito de reunião?
Sim.
Alguns exemplos vêm de França:
Em fevereiro de 2024, duas activistas da “Derniere Renovation”, em França, foram absolvidos após uma ação de lançamento de tinta no Ministério do Ambiente, porque o juiz declarou que tinham o direito de se reunirem.
Da mesma forma, outras ativistas bloquearam a circulação de um jato privado no aeroporto de Cannes e foram absolvidas com base na liberdade de expressão. O juiz considerou que o protesto tinha como objetivo a sensibilização para um tema.
Outras foram absolvidos por terem bloqueado a circulação de um comboio com base na liberdade de expressão.
§11. O juiz pode considerar a crise climática?
Sim.
Em dezembro de 2022, um juiz alemão absolveu um ocupante de árvores num estaleiro de construção privado, alegando que a ação visava a proteção do clima.
Em fevereiro de 2023, um ativista da “Letzte Generation” foi absolvido de um bloqueio de estrada, porque o juiz considerou que os automobilistas são “em grande parte responsáveis pelas emissões de CO2 e, portanto, parte do problema climático”. Assim, segundo o juiz, a obstrução ao tráfego rodoviário e os objectivos do protesto estavam coerentemente ligados.
Em maio de 2024, três activistas da “Just Stop Oil” foram consideradas inocentes de uma marcha lenta porque o juiz considerou que “tinham uma desculpa legal para agir”.
Em junho de 2024, sete activistas da Derniere Renovation, em França, foram absolvidas em segunda instância. O tribunal considerou-os culpadas de bloqueio de estrada. O tribunal superior considerou que a ação não tinha qualquer interesse privado associado e que os meios eram proporcionais aos fins (um clima seguro para todos).
§11.1. Mesmo quando o juiz não tem em conta a emergência climática, os jurados podem ter.
Foi o que aconteceu num caso maravilhoso de activistas da “Just Stop Oil” que perturbavam bombas de petróleo. O juiz impediu três activistas de falarem sobre a emergência climática, restringindo o debate a aspetos técnicos da ação, possíveis danos, etc. No entanto, o júri sabia que se tratava de ativistas da justiça climática. Assim, o júri absolveu-os exatamente porque existe uma emergência climática e a ação foi proporcional.
§12. Estes são apenas alguns exemplos recentes de como existem outras opções para os agentes da polícia, para os procuradores e para os juízes. Nem sequer fizemos uma pesquisa profunda para preparar este ensaio. Apenas perguntámos, obtivemos algumas sentenças e já temos dezenas de casos.
Insistimos neste ponto. Há muitas escolhas, a cada passo do caminho, feitas por muitas pessoas (pessoas que perderão tudo o que amam se não pararmos a crise climática). A repressão é estrutural e sistémica, mas não é automática.
Parabéns e obrigada por esta análise.
Apesar de o aparato judicial servir sobretudo para proteger o status quo, todas as pessoas, em todos os níveis de responsabilidade, podem tomar escolhas que reconheçam a vida, os direitos da Terra e das pessoas, e ponham travões à ganância organizada dos mais poderosos.
Precisamos de polícias, advogados, juízes e procuradores com coragem, humildade e sensibilidade para recusar colaborar na repressão.